A complexidade da gestão pública no brasil: para além do discurso da “eficiência empresarial”, no caso da política habitacional

Por João Sette Whitaker com a colaboração de Sergio Alli A Folha de S.Paulo publicou no domingo, 30/10, uma matéria intitulada “Dória quer 'destravar' projetos de habitação popular com parcerias” (leia aqui) de autoria do...

Por João Sette Whitaker com a colaboração de Sergio Alli

A Folha de S.Paulo publicou no domingo, 30/10, uma matéria intitulada “Dória quer ‘destravar’ projetos de habitação popular com parcerias” (leia aqui) de autoria do repórter Gilberto Bergamin Jr. Não temos ainda definição de quem conduzirá a política habitacional na cidade. É uma boa notícia que, ao menos, o prefeito eleito tenha aparentemente explicitado um pouco de suas ideias a respeito. O jornalista entrevistou-me longamente para essa reportagem e, dentro do possível em uma mídia sabidamente parcial na defesa do conservadorismo, foi fiel ao que eu disse. Imagino, portanto, que o tenha sido também sobre as ideias do novo prefeito.

Permito-me, por isso, fazer alguns comentários. E adianto, de antemão, que expressam certa preocupação. A se juntar as declarações feitas em campanha, com aquelas expressas aojornal, temos a impressão de que o prefeito recém-eleito acha que a problemática da habitação é uma questão simples: será resolvida com a solução aparentemente “milagrosa” da parceria com o setor privado e com um endurecimento para com as ações de ocupação na cidade. As coisas, porém, não são tão simples.

A ideia de que a política habitacional se “destrave” com parcerias com o setor privado é extremamente simplista. A começar porque a questão habitacional, que representa um passivo político e social constituído ao longo de décadas, não depende de algum tipo de “destravamento”, como se fosse apenas uma questão de eficiência e capacidade de fazê-lo. Depende de políticas formuladas de maneira cuidadosa, visando um horizonte longo para sua solução, que depende, sobretudo, da variedade de propostas atendendo o amplo universo de situações a resolver, e da continuidade das políticas públicas por várias gestões. É, aliás, o que tentamos formular e propor no Plano Municipal de Habitação, que deixamos para a cidade.

A solução da parceria não é desprezível em si. Ela só não pode ser tratada como única. Até mesmo porque mesmo no âmbito das parcerias público-privadas (PPP), pode haver inúmeros modelos, bem diferentes uns dos outros. O Governo do Estado apresentou um modelo de PPP para habitação, no qual a atual gestão entrou como parceira, que o novo prefeito promete usar e que, segundo o artigo, “não tem andado sob Alckmin na capital”. É em parte verdade: de fato, até agora só saiu na prática um conjunto em terreno doado pela Prefeitura, para o qual acordamos destinar uma demanda de renda baixa. Mas a PPP apresentou recentemente um projeto bastante ambicioso para mais de mil unidades no terreno da antiga rodoviária, no lugar da muito questionável escola de dança que antes o Governo do Estado pretendia construir. Pessoalmente, acho a proposta habitacional muito mais adequada.

A questão dessa PPP, e o porquê dela não poder ser uma solução única, é que ela tem uma lógica que dificulta bastante o atendimento à população de renda muito baixa (0 a 3 salários mínimos). De fato, esse modelo de parceria prevê a transferência de propriedade (ou seja, as unidades habitacionais são destinadas à compra), por meio de um contrato com uma construtora, e por isso os beneficiados devem ter capacidade de pagamento, para fechar a equação. Tudo muito bom, exceto que, por causa disso, fica difícil fazer com que essa política beneficie de fato a população de renda mais baixa. Não que isso a invalide, pois uma política habitacional, ainda mais visando a dinamização do centro, precisa também de mecanismos que facilitem o acesso da população de renda média-baixa (entre 3 e 6 salários), até mesmo porque a cidade e o centro precisam ter diversidade, inclusive de renda. Porém, no que cabe à participação da prefeitura no único projeto já construído dessa PPP, a Prefeitura solicitou – tendo sido ouvida pelo Estado – que a demanda no seu terreno fosse para atender a população mais pobre.

Como disse, há outros modelos possíveis de PPP. A Prefeitura está, por exemplo, propondo outro, também para moradia social, mas com um enfoque diferente. Como ela tem um bom número de prédios no centro, mas que precisam ser reabilitados (retrofit, no jargão), a ideia é dar o prédio como garantia ao empresário que quiser reformá-lo. Este, como serviço prestado em contrapartida (uma obrigação da PPP, que também tem duração definida, de 20 anos), faria a manutenção do prédio ao longo do contrato. E o que ele ganharia em troca, como contraprestação da parceria? A garantia de aluguel, ao longo desses vinte anos, de 100% dos apartamentos do edifício, a um preço acertado em contrato, assim como os reajustes. No fim do período, o prédio voltaria ao pleno usufruto da prefeitura, sua proprietária.

Qual a diferença com o outro modelo? O de que, neste caso, não se faz a transferência de propriedade, mas se constitui, ao invés disso, um importante parque público de habitações, destinadas ao aluguel social. Como o perfil dos beneficiados não depende da contraprestação paga (não há “conta a fechar”), a prefeitura pode definir uma política de locação, estabelecendo critérios para que as pessoas ocupem esses imóveis, ao longo dos vinte anos, mas também após: 10% da renda familiar tem sido a regra mais comum. A Prefeitura “perde” dinheiro com isso? Uma questão de ponto de vista: digamos que é mais correto afirmar que ela investe na oferta de moradia para aluguel público. Hoje, gastam-se cerca de R$ 150 milhões por ano com os chamados “auxílios-aluguel”, que complementam a renda da população beneficiada com R$ 400 mensais. Muito melhor se esse dinheiro for gasto para se pagar o aluguel de imóveis públicos retrofitados, oferecendo à população de baixa renda não uma ajuda pecuniária (que tende a sair do controle), mas um apartamento para morar. Além do mais, se dará uma solução importante para os prédios vazios do centro, além de se criar um instrumento de retenção da valorização imobiliária, já que, não podendo ser vendidos, esses prédios mantém os preços de aluguel segundo valores estabelecidos pelo poder público. É justo dizer que, quando apresentado aos colegas da PPP do governo do estado, estes mostraram-se bastante interessados em participar, assim como nós participamos da deles. A política habitacional, em toda sua complexidade, só pode dar resultados se construída, republicanamente, com os esforços alinhados de todas as esferas de governo.

Nesse sentido, está correto o artigo da Folha ao informar que a produção do Minha Casa, Minha Vida está travada. Com as dificuldades propositalmente impostas por Cunha e seus pares ao governo Dilma desde sua reeleição, o programa vinha fazendo água desde então, com pouquíssimos repasses, colocando a prefeitura, que tinha avançado como nunca na preparação para a produção dessas unidades, em cheque. Nunca se desapropriou tantos terrenos para destinar à habitação – pelo programa federal – como nesta gestão, em quase R$ 700 milhões. Dinheiro disponível porque, em outro avanço histórico, o Plano Diretor Estratégico definiu que 30% do valor arrecadado nas outorgas onerosas, que alimentam o Fundurb (Fundo de urbanização), deve ser destinado a desapropriações para esse fim. Assim, a cidade, além de entregar mais de 12 mil unidades, tem mais de 23.500 em obras, e outras cerca de 15 mil já licenciadas, à espera dos financiamentos federais.

É louvável que o prefeito eleito queira destravar o PMCMV, portanto. Sendo alinhado ao atual governo (que, pessoalmente, considero ilegítimo), é possível que tenha mais sucesso que a atual gestão na empreitada. O único risco – que não é pequeno, dada a conjuntura de retirada de todos os direitos sociais – é que o governo federal altere o perfil do programa para, como é de praxe por parte de governos conservadores, diminuir ou eliminar a modalidade de atendimento à população mais necessitada, de renda muito baixa, para centrar-se na população intermediária, o que foi aliás o “erro” (do ponto de vista dos que querem o fim da pobreza) do BNH, que em vinte anos produziu significativos 4 milhões de unidades, porém sem beneficiar a população mais pobre.

O PMCMV conseguiu produzir 2,6 milhões em sete anos, mas dos quais cerca de 1 milhão para a população com nenhuma renda ou quase (de zero a três), graças a importantes subsídios (mais de 70 bi) a fundo perdido. Analistas mais ortodoxos podem argumentar que o volume de subsídios foi exagerado demais para as contas públicas, poder-se-ia até pensar em escalonar melhor esses recursos, o que aliás estava previsto no PMCMV 3, que iria criar uma nova faixa mista (com subsídios E financiamento), além da totalmente subsidiada. Porém, é importante explicar que, quando se fala em financiamento, significa deixar de fora uma parcela enorme da população sem condições de arcar com o mesmo, porque, pela lógica bancária que rege esse modelo, qualquer dívida nas Casas Bahia já é motivo de corte. Sem contar todos aqueles, muito pobres, que nem endereço têm (razão pela qual esta gestão se empenhou para acelerar a oficialização de viário em bairros periféricos, dando aos moradores CEP e endereço e, com isso, dando-lhes cidadania. Isso também é parte da política habitacional). Assim, mais uma vez, soluções “pelo mercado” não irão atender as cerca de 370 mil famílias que, como diz o artigo da Folha, são a demanda mais emergencial em São Paulo. São famílias, na grande maioria, que se encaixam no perfil de renda mais baixa.

Mas o enfrentamento da questão habitacional não para por aí. E parcerias com o mercado estão longe de solucionar o extenso universo de situações que a população mais pobre enfrenta. Vale lembrar que, isso ainda não foi assimilado em lugar nenhum no país, a questão da moradia só será de fato resolvida no dia em que se entender que ela é tão ou mais importante do que a questão da saúde ou da educação (sem moradia não se estuda e nem se pode ter saúde), e mereceria uma destinação orçamentária – de recursos puramente públicos, e não do mercado – dezenas de vezes maior do que a que a ela hoje se destina. Mais do que isso, a questão habitacional só será de fato resolvida quando a sociedade brasileira estiver realmente preparada para aceitar que as cidades devem ser de fato democráticas, e que os pobres, tanto quanto os ricos, devem poder morar em toda ela, e também nas áreas com mais e melhor infraestrutura. Por enquanto, o Brasil ainda alimenta uma lógica de produção da cidade que se guia pela exclusão e a segregação. O Plano Diretor Estratégico, aprovado nesta gestão, ficou marcado como o mais avançado do país até hoje justamente porque, ao propor o adensamento da cidade, com limitação de tamanho dos apartamentos e do número de garagens, ao longo dos corredores de transporte público, quebra a pendularidade que tanto a desequilibra, levando habitação – e atividade econômica geradora de empregos – para além do superprivilegiado quadrante sudoeste.

Voltemos à política habitacional propriamente dita. Enquanto amadurecemos esta visão de uma cidade mais democrática (infelizmente, as manifestações ultra-direitistas cada vez mais frequentes mostram que há um caminho longo para a tolerância e a solidariedade sociais tornarem-se motores da urbanização), a realidade urbana está ai, e as grandes cidades como São Paulo são os lugares em que explodem as tensões sociais do país. Por isso, a demanda por moradia sempre será enorme, pois na crise ou na pujança, a cidade atrai moradores em busca de oportunidades, que se instalam nos espaços ao mesmo tempo em que as dinâmicas de valorização desenfreada dos preços dos alugueis coloca cada vez mais gente na rua. Isso, há décadas, em um contexto em que a produção de moradias para os mais pobres, exceto neste curto período do PMCMV, sempre foi insignificante face à demanda, que no Brasil chega a mais de seis milhões de unidades. Assim, não adianta achar que é possível, como disse o prefeito eleito em debate eleitoral, “tirar todo mundo dos mananciais”. São cerca de 1,2 milhão de pessoas. Coloca-se todo mundo em ônibus? E para onde vão? O caminho é avançar na reflexão de formas de urbanização sustentáveis que permitam regularizar e levar a cidade a estas pessoas. Não se pensou muito ao levar o Rodoanel de forma destruidora por sobre os mananciais, não há razão para não se pensar em maneiras dignas de se regularizar a urbanização que ali já ocorreu com alternativas sustentáveis ambientalmente. E de coibir, quanto a isso estamos todos de acordo, novas ocupações, contando que possamos dar políticas de moradia a médio e longo prazo.

Por isso a política de regularização é tão importante: permite o acesso ao direito real sobre um patrimônio muitas vezes constituído pelo trabalho e poupança de várias gerações; dá a segurança da posse para famílias que vivem há décadas no mesmo endereço, porém sem nenhuma garantia de fixação no local; permite a essas famílias realizar com segurança investimentos em melhoria habitacional; fornece um endereço oficial, que lhes permite inserir-se de maneira efetiva na vida econômica e social da cidade. O prefeito eleito disse na campanha que as regularizações em São Paulo “estavam abandonadas”. Será preciso pegar as informações corretas a partir de agora: nunca se regularizou tanto quanto nesta gestão. Foram nada menos do que 215 mil famílias beneficiadas. Agora, é importante saber que “regularizar” é um processo bastante longo, infelizmente, que pode durar até décadas. Recentemente, finalizamos a regularização da Fazenda da Juta, após nada menos do que 30 anos.

A regularização pressupõe muitas modalidades. Às vezes se avança no processo, mas nem por isso obtém-se sua conclusão. Pode-se fazer a regularização do parcelamento do solo, do registro em cartório, da posse ou da propriedade, ou ainda a regularização administrativa do viário. São processos complexos que, mais uma vez, não têm muito como serem “destravados” por parcerias, embora possam beneficiar-se de uma maior eficiência da gestão pública. Por exemplo, conjuntos habitacionais construídos na gestão Erundina aguardavam até hoje sua regularização para que fossem comercializados e a propriedade transferida aos seus ocupantes. Nesta gestão, fizemos isso para mais de 20 mil unidades. Mas que não se iluda o novo prefeito, a melhoria de uma máquina pública com décadas e décadas de acúmulo de procedimentos ineficazes não é tarefa que se resolva da noite para o dia, não é coisa que se solucione com discurso: é resultado de árduo e abnegado trabalho interno, para motivar equipes e fazer andar processos, é ter a vontade política para fazer andar a máquina pública em defesa da população esquecida na burocracia.

Restam as famosas “invasões” que, levianamente, João Dória Jr, em entrevista de campanha ao SPTV, acusou a Sehab de “planejar e promover de dentro da secretaria”. Cheguei a pedir direito de resposta ao Tralli, que como era de se esperar, não me deu. As eleições e suas figuras retóricas encerradas, vale especificar o discurso e cercar melhor a questão: jogar todos os movimentos e ocupações no mesmo saco e sair prometendo um “endurecimento” não irá resolver nada na prática, se é que não vai até atrapalhar.

A sociedade civil é ampla e se organiza das formas mais diversas possíveis. Até mesmo dentre os “movimentos” de moradia, é necessário fazer diferenciações. Criminalizar os movimentos como se fossem uma coisa só é, em termos de política pública de habitação, dar um tiro no pé. Isso porque é graças a eles que a maior parte das políticas habitacionais nas últimas décadas pôde ser colocada em pé, e os mutirões, tocados por associações organizadas de moradia, foram experiência peculiar no Brasil e em São Paulo, que permitiu a construção de milhares de moradias ao longo dos anos. Política pública para os menos favorecidos que não seja verdadeiramente participativa está fadada ao fracasso e a tensionamento, a história já mostrou. E isto não tem nada a ver com partidos. Em São Paulo, o primeiro mutirão foi organizado por Mário Covas. Na gestão Erundina, ganharam nova dimensão. Infelizmente, as gestões conservadoras em São Paulo, de Maluf a Kassab, abandonaram-nos à própria sorte. O PMCMV, ciente da importância de se fazer a política habitacional em consonância com os movimentos de moradia, criou uma modalidade específica, o MCMV-Entidades, para dar continuidade à construção por autogestão. Nada que se contrapusesse à maciça produção empresarial (cerca de 20 mil unidades para mais de 2 milhões), mas é fato de que os conjuntos sob responsabilidade das entidades trouxeram ganhos de qualidade arquitetônica e urbanística inegáveis.

Os movimentos de moradia funcionam pela lógica da ocupação de terras vazias, e isso não é de hoje. Todas as nossas metrópoles foram assim urbanizadas em suas periferias, e muito do que se regulariza hoje é fruto de ocupações ocorridas há décadas atrás. Em grande parte dos casos, ocorreram e ainda ocorrem de maneira espontânea, simplesmente por pessoas sem teto que entram em áreas vazias para construir suas casas, tal a pressão da demanda por moradias. Às vezes sem organização nenhuma, às vezes sob a bandeira de um movimento, às vezes até por orientação de políticos de todos os campos (basta andar pela periferia e ver nas casas os cartazes de políticos dos mais diferentes partidos), esse processo não é novo. Ainda hoje, a manutenção de prédios e glebas vazias – em conflito com o Estatuto da Cidade e, portanto, com a Constituição – é, sem, dúvida, um dos maiores problemas para nossas cidades. São, no Brasil, cerca de 5 milhões de imóveis vazios, para um déficit pouco maior do que seis milhões de moradias. As ocupações são feitas para chamar a atenção para tal idiossincrasia. Processos em alguns casos polêmicos, em outros legítimos, o fato é que essa dinâmica é de difícil controle. Não há poder público que seja capaz de fiscalizar a ação dos movimentos em todos os prédios e terrenos vazios, particulares e públicos, da cidade. Aliás, para os imóveis particulares, a fiscalização nem é responsabilidade da prefeitura, mas sim do proprietário. E nas áreas de mananciais, que o então candidato tanto citou, a polícia ambiental é, vale lembrar, estadual. Assim, não faz nenhum sentido as fartas insinuações de que a prefeitura “deixou acontecer” invasões, porque elas ocorrem para além do controle ou da vontade do poder público. Os movimentos mais organizados muitas vezes conseguem, com isso, alavancar negociações para novas políticas habitacionais, sejam elas municipais, estaduais (com a CDHU), ou federais.

Ocorre que se apenas houvesse movimentos sérios, orgânicos, com anos de luta e muito bem organizados, como são muitos (e alinhados com diversos partidos, que ninguém se engane pelo discurso antipetista de tentar dizer que todo movimento social “é coisa do PT”), seria muito bom. Pois é impossível fazer política habitacional séria sem um bom diálogo com eles, que representam uma parcela bastante organizada da demanda habitacional. Tensionar esse diálogo antes mesmo de se começar uma gestão é, se me permitirem um conselho amigo, um erro sem tamanho. Seria ir contra até mesmo a política do Estado que, junto com a prefeitura, vem fazendo bom diálogo nesse sentido. Além disso, outra informação importante, para que não fique no ar a acusação feita superficialmente: quando prédios públicos municipais são ocupados, às vezes imóveis com projetos públicos previstos e em andamento, a reintegração de posse sempre é solicitada.

Mas é bom que o novo prefeito saiba que em muitos casos, hoje em dia, os “movimentos” não são esses que descrevo acima. São, cada vez mais frequentemente, fachadas para ações do crime organizado. Esse processo é duplamente perverso, pois coloca os governos contra a parede, na sua correta recusa em negociar com bandidos e ao mesmo tempo serve à direita conservadora que propositalmente força a confusão entre eles e os legítimos movimentos de moradia. Siglas inventadas, muito parecidas com a de movimentos históricos e organizados, ajudam na confusão. E tal fenômeno vem causando enorme prejuízo a uma luta legítima feita por gente honesta. É sintomático que o artigo da Folha, para ilustrar a pressão do “movimento” de moradia, tenha colocado uma foto de um acampamento realizado por um tal de MSTS no Viaduto do Chá, em frente à Prefeitura. Com barracas estranhamente novas em folha, desocupadas na maior parte do tempo, o dito “movimento” ficou lá cerca de um mês fazendo discursos partidarizados e agressivos contra a gestão. Eram os “líderes” de uma ocupação de prédio público, o Cine Marrocos. Na época, questionado como sempre em tom de cobrança por uma repórter do Estadão, era difícil explicar que se tratava, no nosso entender, de bandidagem, com denúncias anônimas de violências dentro do prédio e cobrança de “alugueis” abusivos dos ocupantes, na maior parte imigrantes recém chegados, desamparados e manipulados. O pouco que disse serviu para que, minutos depois, o alto-falante no viaduto bradasse que o “secretário nos chamou de picaretas”.

E eram (estou falando das lideranças), para dizer o mínimo. Meses depois, uma ação do Denarc no prédio prendeu essa liderança: em seu “quarto” no último andar do prédio, guardava quilos de crack para distribuir no centro, duas escopetas e mantinha um sistema de vigilância de todo o prédio por vídeo. Descobriu-se que essa “liderança” possuía uma mansão no Jabaquara e era, além disso, dono de boate.

Em outros casos, esses mesmos “movimentos” invadem (às vezes à mão armada) conjuntos habitacionais quase prontos e em vias de serem entregues, causando grande prejuízo às famílias que seriam beneficiadas. Pois é, lidar com a questão das ocupações ou invasões também significa lidar com essas situações, e a política deve fazer frente a tudo isso. Não se trata, portanto, de assunto a ser tratado, nem no discurso e muito menos na prática, como se fosse uma coisa só contra a qual se deve “endurecer”. Vale dizer, esse “movimento” enganou a todos, seu líder já cortejou até o partido do prefeito eleito (como mostrou reportagem do DCM), e a grande mídia deu-lhe bastante espaço (inclusive quando esse mesmo líder, hoje preso, foi manifestar-se agressivamente na frente da casa do prefeito Haddad). Não, governar com lucidez, sabendo desvencilhar-se dessas armadilhas, não é fácil para ninguém.

Como o jornal não poderia deixar de alfinetar, nem que fosse um pouco, a atual gestão, a reportagem adentra, por fim, em um assunto comumente usado para isso, o das famosas “listas de espera” para o atendimento habitacional. Um assunto complexo mas que permite um julgamento simplista e manipulador. Se há lista, ela deve ser atendida. Mas a coisa, evidentemente, não é tão simples, e é bom também que a nova gestão tenha clareza de como tudo isso funciona.

Na década de 1970, o governo militar criou o BNH para financiar a construção de moradias populares. Junto com o BNH foi criada uma fila da moradia, que no município era organizada pela Cohab. Um cadastro que deveria proporcionar atendimento habitacional conforme a ordem de inscrição dos interessados. Essa política de “fila” mostrou-se equivocada numa situação em que o poder público produzia muito menos moradias do que a demanda por elas, que crescia intensamente, junto com a disseminação de favelas, em todas as cidades brasileiras. Outro problema da fila baseada na ordem cronológica de inscrição é que nem sempre a oferta disponível de moradia se adéqua ao perfil socioeconômico de quem está à frente na fila, já que a política de moradia é e deve ser variada em suas modalidades. Com isso, acabava travando o atendimento habitacional.

No início da década de 1990, a fila da Cohab foi extinta, ou seja, deixou-se de ter um critério cronológico para o atendimento. Foi criado, então, um cadastro socioeconômico, cujo atendimento se dá conforme as diversas modalidades de atendimento habitacional. Nos últimos 36 anos, uma grande variedade de políticas foi praticada pelos diferentes governos. Há políticas de provisão habitacional estratificadas por renda familiar dos beneficiários (de x a y salários-mínimos), há políticas por tipo de demanda (cortiços, moradores de rua, idosos, etc.), há políticas voltadas para territórios (favelas e áreas de mananciais, por exemplo), e também há políticas habitacionais ligadas a execução de obras públicas que implicam a remoção de moradores, o que é muito comum no caso de urbanização de favelas. Há políticas de financiamento da construção de habitações por  autoconstrução, mutirão e gestão transferida para movimentos de moradia. Há políticas de provisão habitacional ligadas à política urbana, como aquelas financiadas pelas Operações Urbanas, que também têm uma delimitação territorial. E há ainda outras políticas, inclusive aquelas que não estão atreladas à provisão de novas habitações privadas, como é o caso da locação social.

No caso do PMCMV, como o programa organiza a seleção dos beneficiados por sorteio (para 50% das unidades do empreendimento), dentro é claro da faixa de renda elegível, exigiu-se que os municípios criassem uma outra lista (mais uma vez organizada pela COHAB), de inscrição livre. Qualquer um pode ir lá e se inscrever, o que não significa que estará elegível para beneficiar-se do programa, já que posteriormente um filtro por renda e outros critérios é realizado (mulheres chefes de família, idosos, membros da família com doença crônica ou portadores de deficiência, mulheres vítimas de violência doméstica, etc.). Por isso, a lista conta com cerca de 1,5 milhão de inscritos. Para torná-la minimamente operacional, pede-se o recadastramento anual dos interessados, o que a faz baixar para cerca de 100 mil inscritos ativos. A eles se somam aquelas cerca de 30 mil famílias que a própria prefeitura inscreve, dos que, por diversos motivos (situação de risco, deslocamento por obras, vulnerabilidade social extrema, etc.), encontram-se no auxílio-aluguel e têm prioridade absoluta no atendimento habitacional. Dessas listas se desdobram várias outras, de encaminhamentos às diferentes modalidades de políticas de habitação (empreendimento do PMCMV, urbanizações de favelas, aluguel social, etc.).

Portanto, reduzir a questão do atendimento a uma suposta fila única, que não existe, é desinformar o leitor e esconder dele a complexidade da questão. Entende-se que a Folha não possa publicar textões, e assim resume os fatos de forma pouco elucidativa, se não enganosa. Infelizmente, a política pública é mais complexa do que o que se possa resumir em meia página de jornal. Por tudo isso, é absolutamente insuficiente e induz a enganos tentar explicar porque uma pessoa não conseguiu atendimento habitacional levando em conta exclusivamente o tempo em que ele se inscreveu no cadastro da Cohab-SP. É claro que, em um universo tão amplo, com uma máquina pública do porte da de São Paulo, há enganos e injustiças, que sempre tenta-se corrigir. Mas é preciso saber com detalhes, por exemplo, qual a renda familiar da pessoa nesse período, se não estava acima das dezenas de critérios que priorizam o atendimento a outras, geralmente ainda mais pobres.

Em resumo, a política habitacional é tão complexa quanto são diversas as situações que ela deve enfrentar. Por isso, deve-se antes de tudo tentar dimensionar o problema e enxergar as possíveis soluções para um prazo que vá além de uma gestão. Pois nenhuma política urbana consegue ser concluída em quatro anos. No caso da moradia, só para achar terra, comprá-la, fazer projeto, licenciá-lo, conseguir e aprovar o financiamento, e construir, esse tempo já passou, com folga. Assim, pensar na política apenas atendendo a demanda imediata do dia-a-dia, definindo locais de intervenção e pessoas beneficiadas sem ter antes um fio condutor que sirva de orientação, também não resolve.

Nesta gestão, depois de alinhavar as bases legais para uma boa política de terras e habitação no Plano Diretor Estratégico (que duplicou as ZEIS, criou a Cota de Solidariedade, notificou imóveis vazios, reservou 30% do Fundurb para desapropriação de terra para habitação, entre outras medidas), depois de garantir as mesmas ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) na lei de uso e ocupação do solo (Zoneamento), detivemo-nos a produzir um Plano de Habitação que pudesse ser exatamente esse fio condutor. Uma política de moradia, definindo claramente a dimensão do problema e estabelecendo meios para enfrentá-los, nos próximos 16 anos.

Nesse plano, trazemos coisas muito inovadoras: o uso dos imóveis vazios notificados no centro para locação social, a estruturação de uma política de atendimento habitacional à população vulnerável casada com as demais secretarias da área (Assistência, Social, Políticas para as mulheres, Direitos Humanos, etc.), a formulação de uma política consistente de locação social, com a formação de um parque público de moradias, a prioridade para as intervenções em bairros precários, de uma maneira pontual e baseada na fixação das pessoas e na melhoria de suas casas e dos bairros, a regulação dos preços de aluguel na cidade para aumentar a oferta de mais baixo preço, e assim pior diante. Nesse plano, não colocamos o nome de ninguém, pois foi de autoria coletiva, amplamente discutido, do Ministério Público aos movimentos, dos empresários aos acadêmicos. Foi encampado pelo Conselho Municipal de Habitação. E estará sendo enviado, em forma de Projeto de Lei, para a Câmara Municipal.

A continuidade desse Plano, encorajada pelo Conselho, é a melhor alternativa de continuidade de uma política consistente de moradia na cidade. Sem nenhum prejuízo a que seja implementado com eficiência, a que promova o destravamento de tantos entraves, com parcerias e apoio de quem quer que seja, desde que para o bem das famílias mais pobres da cidade.

 

 

Fonte: cidades para que(m)?