Zygmunt Bauman: “Cuidado com os políticos que fazem dos nossos sentimentos um instrumento de poder”

"Os vínculos se despedaçam, o espírito de solidariedade enfraquece, a separação e o isolamento tomam o lugar do diálogo e da cooperação", afirma o sociólogo polonês Zygmunt Bauman Por Giulio Azzolini Do Jornal La...

“Os vínculos se despedaçam, o espírito de solidariedade enfraquece, a separação e o isolamento tomam o lugar do diálogo e da cooperação”, afirma o sociólogo polonês Zygmunt Bauman

Por Giulio Azzolini

Do Jornal La Repubblica
Tradução de Moisés Sbardelotto, do Adital

Em entrevista ao Jornal La Repubblica, Bauman analisa as constradições contemporâneas. Confira.

Professor Bauman, passaram-se 10 anos desde que o senhor escreveu Medo Líquido (Ed. Laterza). O que mudou desde então?

O medo ainda é o sentimento predominante do nosso tempo. Mas, acima de tudo, é preciso que nos entendamos sobre que tipo de medo se trata. Muito semelhante à ansiedade, a uma incessante e generalizada sensação de alerta, é um medo multiforme, exagerado na sua imprecisão. É um medo difícil de se captar e, por isso, difícil de combater, que pode arranhar até os momentos mais insignificantes da vida cotidiana e afeta quase todas as camadas da convivência.

Para o filósofo e psicanalista argentino Miguel Benasayag, a nossa época é a das “paixões tristes.” O que acontece quando o medo abraça a desconfiança?

Acontece que os laços humanos se despedaçam, que o espírito de solidariedade enfraquece, que a separação e o isolamento tomam o lugar do diálogo e da cooperação. Da família à vizinhança, do local de trabalho à cidade, não há ambiente que permaneça hospitaleiro. Instaura-se uma atmosfera sombria, em que cada um alimenta suspeitas sobre quem está ao seu lado e é, por sua vez, vítima das suspeitas alheias. Nesse clima de desconfiança exagerada, basta pouco para que o outro seja percebido como um potencial inimigo: será considerado culpado até que se prove o contrário.

Contudo, a Europa já conheceu e derrotou a hostilidade e o terror: o político das Brigadas Vermelhas na Itália e da RAF na Alemanha, o étnico-nacionalista do ETA na Espanha e do IRA na Irlanda. O nosso passado ainda pode nos ensinar algo, ou o perigo de hoje é incomparável?

Os precedentes certamente existem. No entanto, poucos mas decisivos aspectos tornam as atuais formas de terrorismo muito diferentes dos casos que você lembrava. Estes últimos se aproximavam a uma revolução (visando, como as Brigadas Vermelhas ou a RAF, a uma subversão do regime político) ou a uma guerra civil (apontando, como o ETA ou o IRA, à autonomia étnica ou à libertação nacional), mas sempre se tratava de fenômenos essencialmente domésticos. Pois bem, os atos terroristas atuais não pertencem a nenhuma dessas duas situações: a sua matriz, de fato, é completamente diferente.

 

Qual é a peculiaridade do terrorismo atual?

A sua força deriva da capacidade de corresponder às novas tendências da sociedade contemporânea: a globalização, por um lado, e a individualização, por outro. Por um lado, as estruturas que promovem o terrorismo se globalizam muito além das capacidades de controle dos Estados territoriais. Por outro lado, o comércio de armas e o princípio de emulação alimentado pela mídia global fazem com que quem empreenda ações de natureza terrorista sejam indivíduos isolados, movidos talvez por vinganças pessoais ou desesperados por um destino infeliz. A situação que brota da combinação desses dois fatores torna quase totalmente invencível a guerra contra o terrorismo. E é bastante improvável que ele abdique de dinâmicas já autopropulsivas. Em suma, repropõe-se, sob novas formas, o mítico problema do nó górdio, que ninguém sabe desfazer: e são muitos os chamados herdeiros de Alexandre Magno, que, enganando, juram que as suas espadas conseguiriam cortá-lo.

Para muitos políticos e muitos comentaristas, as raízes do terrorismo devem ser buscadas no aumento descontrolado dos fluxos migratórios. Quais são, na sua opinião, as principais razões da violência contemporânea?

Como é evidente, os ganhos eleitorais que são obtidos estabelecendo um nexo de causa-efeito entre imigração e terrorismo são muito alentadores para que os concorrentes no jogo de poder renunciem a eles. Para quem decide, é fácil e conveniente participar de um leilão sobre o meio mais eficaz para abolir a chaga da precariedade existencial, propondo soluções falsas, como fortificar as fronteiras, parar as ondas migratórias, ser inflexível com os requerentes de asilo… E, para a mídia, é igualmente fácil dar visibilidade à polícia que invade os campos de refugiados ou difundir as imagens fixas e detalhadas de um ou dois homens-bomba em ação. A verdade é que é malditamente complicado tocar com a mão as raízes autênticas de uma violência que cresce em todo o mundo, em volume e em intensidade. E, dia após dia, torna-se ainda mais difícil, senão precisamente impossível, demonstrar que os governos identificaram aquelas raízes e estão trabalhando realmente para erradicá-las.

Isso significa que os políticos ocidentais também utilizam o medo como instrumento política?

Exatamente. Assim como as leis do marketing impõem que os comerciantes proclamem incessantemente que o seu objetivo é a satisfação das necessidades dos consumidores – embora estando eles plenamente conscientes de que, ao contrário, a insatisfação é o verdadeiro motor da economia consumista –, assim também os empresários políticos dos nossos dias declaram, sim, que o seu objetivo é garantir a segurança da população, mas, ao mesmo tempo, fazer todo o possível, e até mais, para fomentar a sensação de perigo iminente. O núcleo da atual estratégia de dominação, portanto, consiste em acender e em manter viva a centelha de insegurança…

E qual seria o propósito dessa estratégia?

Se há algo que muitos líderes políticos não viam a hora de aprender, é o estratagema de transformar as calamidades em vantagens: reacender a chama da guerra é uma receita infalível para desviar a atenção dos problemas sociais, como a desigualdade, a injustiça, a degradação e a exclusão, e fortalecer o paco de comando-obediência entre os governantes e a sua nação. A nova estratégia de dominação, fundamentada no deliberado impulso à ansiedade, permite que as autoridades estabelecidas não cumpram a promessa de garantir coletivamente a segurança existencial. Deveremos nos contentar com uma segurança privada, pessoal, física.

O senhor acredita que, desse modo, as instituições correm o risco de perder o caráter democrático?

Certamente, a constante sensação de alerta afeta a ideia de cidadania, além das tarefas a ela ligadas, que acabam sendo liquidadas ou remodeladas. O medo é um recurso muito convidativo para substituir a demagogia com a argumentação e a política autoritária com a democracia. E os apelos cada vez mais insistentes à necessidade de um Estado de exceção vão nessa direção.

O Papa Francisco parece ser o único líder disposto a desfazer aquilo que o senhor, em outro lugar, chamou de “o demônio do medo”.

O paradoxo é que é precisamente aquele que os católicos reconheçam como o porta-voz de Deus na terra que nos diz que o destino de salvação está nas nossas mãos. A estrada é um diálogo voltado a uma melhor compreensão recíproca, em uma atmosfera de respeito mútuo, em que estejamos dispostos a aprender uns com os outros.

Escutamos Francisco muito pouco, mas a sua estratégia, embora de longo prazo, é a única capaz de resolver uma situação que se assemelha cada vez mais a um campo minado, saturado de explosivos materiais e espirituais, salvaguardados pelos governos para manter a tensão em alta. Enquanto as relações humanas não tomarem o caminho indicado por Francisco, é mínima a esperança de limpar um terreno que produzirá novas explosões, mesmo que não saibamos prever com exatidão as coordenadas.