‘Exu nas escolas’: Ciep mostra como cumprir lei do ensino afro-brasileiro
Legislação completa 15 anos, mas ainda não é plenamente praticada em muitos colégios
“Exu nas escolas”, exige Elza Soares, em uma das canções de seu álbum mais recente, numa alusão à falta de diversidade no ensino brasileiro. O protesto da cantora tem causa. Um dos desafios de uma educação inclusiva é reconhecer que muitas salas de aula no Brasil precisam se comprometer com o ensino antirracista e a não resumir a história dos negros à escravidão. Em 2018, a Lei 10.639, que inclui a história e a cultura afro-brasileira no âmbito de todo currículo escolar completou 15 anos. Durante esse período, algumas colégios buscaram reformular o currículo para incluir os temas, mas a verdade é que a lei ainda não é plenamente cumprida.
O Ciep 175 José Lins do Rego é um ponto fora da curva. Localizado em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, a escola é referência em práticas pedagógicas que atendem a Lei 10.639. Além de trabalhar a literatura africana em sala, a escola desenvolve atividades como escola de samba, concurso de beleza negra, teatro, aulas de música, oficinas de cinema e até seu próprio TEDx Talks – o CIEPx, com personagens locais.
O diretor Nelson Silva mantém o colégio como um espaço voltado para a comunidade ao redor, mas que também dá visibilidade ao conhecimento produzido por outros povos. “Não existe essa história do professor não estar preparado, mas sim de não estar a fim. A questão é entender a importância do tema e buscar informações. O papel da escola é suscitar a discussão, e não necessariamente chegar com o pacote pronto”, diz Silva.
Não houve treinamento
Os avanços e retrocessos da Lei 10.639 começam em 2003, quando as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) foram modificadas para incluir no currículo oficial o estudo da história da África e dos africanos; a luta dos negros no Brasil; a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil.
Professora de língua portuguesa e literatura do Ciep, Luci Dias explica como foi sua adaptação para atender a norma:
“Eu percebo que, quando começamos esse trabalho, acontece uma mudança no pensamento do aluno. Nos Cieps a concentração de negros é grande e, por ser na Baixada, esse número é ainda maior aqui. Quando a lei surgiu, não tivemos uma orientação pedagógica de como deveria se trabalhar. Uma parte do livro didático fala sobre literatura africana, mas o nosso trabalho acontece no dia a dia. A gente faz isso com muita naturalidade porque a escola incorporou essa proposta”, conta a professora.
Mas a lei não teve o mesmo impacto em todas as salas de aula. O Coordenador de ensino da rede de colégios particulares Notre Dame, Marcelo Ferreira reconhece que existe uma falha no ensino de história e cultura afro-brasileira em grande parte das escolas. Para ele, a Lei 10.639 é só mais uma norma que não é cumprida por muitas instituições de ensino. Um exemplo: a lei também inclui no calendário escolar o “Dia Nacional da Consciência Negra”, 20 de novembro. Há alguma mobilização na data?
“Não temos nenhum evento específico para o Dia da Consciência Negra. A data serve para lembrar que não estamos fazendo alguma coisa. Nós tratamos muito pouco desse tema porque o foco é a prova do Enem, que aborda pouco as questões políticas, econômicas e culturais da África. A gente gira em torno de uma história eurocêntrica e vemos que (a Lei 10.639) é só mais uma lei teórica como tantas outras que existem no Brasil”, constata o coordenador.
A pressão por preparar o aluno para conseguir uma vaga na universidade não é desculpa para não respeitar a lei, acredita o diretor do Ciep 175. Ele defente que o papel da escola é construir valores, e não apenas passar conteúdo. “Se o Enem não cobra violência, questões de gênero ou LGBT, não vamos falar sobre isso? Precisamos entender qual é o papel da escola na formação da cidadania do aluno. Temos que nos preocupar com a construção de valores e a questão racial é fundamental em um país como o Brasil”, diz o diretor.
Um exemplo disso foi o concurso de beleza negra, uma das ações de destaque no Ciep 175. Segundo o professor de artes Aldair Ventura, a atividade foi pensada para debater o conceito de belo na sociedade brasileira:
“O concurso de beleza negra foi uma das atividades que pensamos para estimular a autoafirmação do aluno. A beleza é só o mote para trabalhar a conscientização. Precisamos desmistificar que a beleza é grega.”, explica Ventura.
O resgate histórico e cultural tem impacto positivo nos dois mil alunos. A animadora cultural Valéria Monã destaca a importância de mudar a imagem que o aluno tem de si mesmo para que ele consiga transformar o mundo à sua volta:
“Você pode andar pela escola que vai ver muitos cabelos afros. No concurso de beleza negra, conseguimos discutir estética, mais do que apenas tirar foto. Aqui damos a arma do conhecimento, porque queremos que nossos alunos saiam de uma estatística e entrem na outra”, afirma Valéria, referindo-se aos dados do último Censo Escolar, divulgado pelo Inep em 2017, mostrando que 12,9% dos alunos abandonaram a escola no 1º ano do ensino médio entre 2014 e 2015.
O Ciep 175 mostra que é possível quebrar os tabus cantados em “Exu nas escolas”, por Elza Soares. “Exu te ama e ele também está com fome, porque as merendas foram desviadas novamente. Num país laico, temos a imagem de César na cédula e um ‘Deus seja louvado”.
Fonte: Projeto Colabora