Aumento da mortalidade na infância no Brasil é sinal de alerta. Índice é muito sensível a alterações socioeconômicas e pode apontar mais problemas sociais.
Jéssica Maes, especial para a Gazeta do Povo
Um antigo fantasma voltou a assombrar o Brasil: pela primeira vez em 26 anos a taxa de mortalidade na infância (crianças até 5 anos) aumentou. Enquanto em 2015 o índice era de 14,3 mortes na infância para cada mil nascidos vivos, em 2016 esse número subiu para 14,9 (os valores de 2017 ainda não foram consolidados), uma alta de 4,19%. As informações foram compiladas pela Fundação Abrinq com base nos sistemas de informações sobre nascidos vivos e mortalidade do Ministério da Saúde.
Em 1990, quando foi implementada globalmente a metodologia atual, a taxa de mortalidade infantil no Brasil era de 47,1. Por mais de duas décadas, o Brasil foi exemplar em suas políticas para o combate à mortalidade infantil, com uma média de redução de 4,9% ao ano, enquanto no mundo a média era de 3,2%. O país se destacou, inclusive, na corrida pelos Objetivos do Milênio, sendo um dos poucos a bater a meta da redução da mortalidade infantil três anos antes da data limite, ainda em 2012.
“Por isso o nosso espanto e preocupação quando pela, primeira vez em 26 anos, houve um aumento de 5% da taxa de mortalidade em menores de um ano”, conta a chefe da área de Saúde, HIV e Desenvolvimento Infantil do Unicef no Brasil, Cristina Albuquerque.
Impacto da crise
O índice de mortalidade na infância é muito sensivelmente afetado pelas condições sociais. “Essa taxa sofre um impacto direto da estrutura, é um reflexo muitos determinantes sociais”, aponta Cristina. Fatores como renda, mercado de trabalho, infraestrutura de moradia, saneamento, educação, rede de transporte eficiente, acesso à saúde e segurança pública estão diretamente relacionados a ela.
O professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Roberto Bueno concorda e destaca que todo o cotidiano da criança pode influenciar na taxa: o local onde ela mora e brinca, a violência no bairro, o tipo de alimentação que ela recebe, se foi amamentada adequadamente e o acesso aos serviços de saúde. “Quando ocorre uma melhoria das condições sociais e da distribuição de renda, com políticas que atendam à população, tem uma melhoria na saúde. Já quando menos recursos públicos são destinados a pessoas mais socialmente vulneráveis – o que está acontecendo hoje, com austeridade fiscal e menos recursos para programas sociais – há um impacto direto na mortalidade infantil”.
Globalmente, regiões com índices menores de desenvolvimento e altos índices de pobreza, como África (76,5 mortes antes dos cinco anos de idade a cada mil nascimentos), têm taxas maiores de mortalidade infantil do que regiões mais desenvolvidas e de população mais rica, como a Europa (9,6) – o mesmo tipo de desigualdade que acontece também entre estados, municípios e até bairros.
O crescimento da mortalidade na infância coincide com a piora de outros indicadores brasileiros. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mensal (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último trimestre de 2015 a taxa de desocupação era de 9%. Já no último trimestre do ano seguinte, esse número subiu para 12%. A taxa de ocupação é medida pelo percentual de pessoas desocupadas em relação às pessoas na força de trabalho.
“O desemprego que se agravou nesse quadro recente de crise econômica e política também atua em desfavor da melhoria de indicadores socioeconômicos, inclusive aumentando a pressão sobre o poder público. Ou seja, serão mais pessoas demandando um conjunto de bens e serviços públicos”, diz Glenda Dantas, professora do Departamento de Gestão Pública da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que acredita que a situação merece atenção. “Precisamos estar alerta ao processo de planejamento e gestão das políticas sociais”.
O país também encerrou o ano de 2016 com 12,1% da população, 24,8 milhões de pessoas, na miséria, vivendo com renda equivalente a R$ 220 – 53% a mais do que em 2014, quando a crise econômica começou. Os números são da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), do IBGE.
No Brasil, as regiões com os maiores índices de mortalidade infantil são Norte (18,7) e Nordeste (16,8). As taxas são ainda mais altas em cinco estados: Roraima (23,3), Amapá (21,5), Amazonas (19,3), Acre (18,9) e Pará (18,8). Apenas sete estados tiveram redução nas taxas de 2016: Paraná, Rondônia, Acre, Rio Grande do Norte, Alagoas, Santa Catarina e Distrito Federal.
Em nota, o Ministério da Saúde aponta que a taxa teve um “repique”, o que não caracterizaria um aumento significativo ou mudança da tendência de redução da mortalidade infantil. Paulo Bracarense, professor do departamento de Estatística da UFPR, concorda, mas pede cautela. “A afirmação é correta, mas levanta um alerta uma vez que esta taxa vinha diminuindo sistematicamente”.
A nota oferece, ainda, duas explicações para a alteração no índice: “É importante destacar que, em 2016, houve redução de 5,3% na taxa de nascimentos no Brasil, parte atribuída ao adiamento da gestação e, parte, ao impacto da epidemia do vírus zika. O número de nascimentos passou de 3.017.668 para 2.857.800, redução de 159.868 nascimentos em 2016. Com isso houve redução do denominador usado para cálculo da taxa de mortalidade infantil, o que afetou o cálculo da taxa. É também necessário esclarecer que as crianças são as que mais sofrem com as mudanças socioeconômicas”.
Enquanto a crise econômica pode ser um fator válido, já que atingiu especialmente famílias mais pobres e, consequentemente, em maior vulnerabilidade social, Bracarense chamou de “grosseira” e “não aceitável” a justificativa baseada na redução no número de nascimentos. Isso porque a estatística é baseada na relação entre mortes a cada mil nascidos vivos, ou seja, os dois valores (mortes e nascimentos) variam juntos.
Cenário desanimador
A instabilidade econômica, por outro lado, pode realmente ter um impacto mais direto e imediato. Além de cortes em programas sociais e verbas destinadas à saúde e infraestrutura, o desemprego e a inflação afetam mais fortemente populações mais pobres. E a previsão para o futuro, segundo pesquisadores, não é animadora. “Permanecendo essa tendência de cortes em políticas sociais é indiscutível que teremos piora na taxa de mortalidade na infância e em outros índices”, afirma Glenda.
“A implementação de medidas de austeridade fiscal no Brasil pode ser responsável por uma morbidade e mortalidade substancialmente maiores na infância do que o esperado sob a manutenção da proteção social – ameaçando atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para a saúde infantil e a redução da desigualdade”, concluíram os cientistas.
Segundo a projeção no cenário mais provável de crise econômica, caso fossem mantidos os níveis de proteção social oferecidos pelo Bolsa Família e pela Estratégia Saúde da Família, a taxa de mortalidade na infância ficaria 8,57% mais baixa em 2030 do que em um quadro de austeridade econômica que prejudique esses programas. Assim, cortes orçamentários relacionados a estas iniciativas podem levar a 20 mil mortes e 124 mil hospitalizações de crianças menores de cinco anos entre 2017 e 2030. A manutenção adequada do Bolsa Família e do Saúde da Família poderia reduzir mortes por diarréia, desnutrição e infecções do trato respiratório desta faixa etária em 39,3%, 35,8% e 8,5%, respectivamente, em 2030.
Mortes evitáveis e falhas no sistema de saúde
As mortes por causas evitáveis, causadas, por exemplo, por diarreias e pneumonias, e que são diretamente impactadas por um mau momento na economia, alarmam a chefe da área de Saúde, HIV e Desenvolvimento Infantil do Unicef no Brasil, Cristina Albuquerque. “A crise de fato afetou as famílias mais vulneráveis – se refletindo na renda, na empregabilidade – mas outro fator muito preocupante é o impacto dela no sistema de saúde. Uma criança morrer por diarreia nos dias de hoje é uma coisa séria. Mostra que há uma falha no sistema de saúde no Brasil e no apoio àqueles em maior vulnerabilidade”. Houve aumento de 12% nas mortes de menores de cinco anos por diarreia entre 2015 e 2016.
A professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do departamento de neonatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) Maria Albertina Santiago Rego acredita que a instabilidade brasileira dos últimos anos afeta também a organização da prestação de serviços de saúde.
“O que aumentou foi o número absoluto de mortes no pós-neonatal”, ressalta. “A maioria das doenças são sensíveis aos serviços básicos do sistema de saúde. Então é preciso rever o acesso ao sistema e o pediatra precisa estar à frente desses processos, coordenando essas equipes, já que tem uma competência técnica para isso”.
“A Saúde da Família mostrou-se uma estratégia fundamental, especialmente nos municípios mais distantes e foi, sem dúvida, fundamental na melhoria da saúde da população. Mas muitas das equipes básicas da Saúde da Família não têm pediatras, que acabam ficando apenas nas equipes de apoio”, explica. A presença do pediatra em todas as fases do atendimento pode garantir, por exemplo, que as gestantes sejam orientadas desde o início sobre a importância do do acompanhamento pré-natal e do aleitamento materno, ampliando diretamente o cuidado com a saúde do bebê. “A gente tem que olhar minuciosamente para cada ponto de atenção onde essa criança está sendo atendida para poder diagnosticar os problemas”.
Onde está a solução?
Em resposta aos índices, o Ministério da Saúde afirma que estão sendo desenvolvidas ações conjuntas a outros órgãos governamentais. Uma delas foi a criação de um grupo de trabalho com acadêmicos para avaliar as causas do “repique” na taxa de mortalidade. “Há uma reunião com os secretários de saúde de estados e municípios agendada para o final de agosto para discutir a situação em profundidade e estudar formas de ação mais urgentes”, afirmou a pasta em comunicado.
Para Maria Albertina, uma das frentes para reverter esse quadro deve ser a melhora na estruturação das equipes envolvidas no sistema de saúde em todos os níveis. “Uma boa saúde tem que ter uma estrutura adequada, processos organizados e monitorar seus resultados”. É preciso garantir, por exemplo, que não apenas o número de leitos seja suficiente, mas também que a distribuição deles seja equilibrada. “Não dá para ficar transportando pacientes o tempo todo, muito menos crianças. O atendimento tem que ser feito num tempo muito curto e isso é difícil num país de dimensões continentais como o Brasil”, destaca.
Segundo informações do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), do Ministério da Saúde, apuradas pela SBP, entre 2010 e 2016, o Brasil desativou mais de 10 mil leitos pediátricos do SUS. Além disso, atualmente o país sofre com um déficit de 3.305 leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) neonatais.
A assessoria de imprensa do ministério aponta que o número de leitos de UTI aumentou 671% em dez anos, indo de 2.786 em 2008 para 21.483 em 2018 e que essas unidades exigem maior estrutura e esforço profissional. Já em relação à desativação de leitos gerais de internação, a assessoria diz que a tendência mundial é a “desospitalização – com os avanços tecnológicos, tratamentos que exigiam internação passaram a ser feitos no âmbito ambulatorial e domiciliar”.
De acordo com o ministério, na atenção básica, em que teriam sido injetados R$ 20,3 bilhões no ano passado, é possível resolver até 80% dos problemas de saúde. O sistema é composto por 42,9 mil unidades básicas de saúde, 42,6 mil equipes de Saúde da Família e 263,4 mil agentes comunitários de saúde em todo o país.
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A chefe da área de Saúde, HIV e Desenvolvimento Infantil do Unicef no Brasil, Cristina Albuquerque, acredita que é exatamente no atendimento primário que está o segredo para reverter a situação, em especial o aumento nas mortes de crianças por doenças evitáveis. “Ainda dá tempo e o Brasil tem condições para voltar ao seu caminho e ao seu círculo virtuoso. Para isso eu tenho três sugestões: fortalecer a atenção básica, fortalecer a atenção básica e fortalecer a atenção básica”.
Programas ativos
As duas décadas de sucesso na redução constante da taxa de mortalidade infantil dão uma vantagem ao Brasil: já existem muitos processos efetivos estruturados que podem ser suplementados e ajustados.
Criada em 1994 (sob o nome Programa Saúde da Família), a Estratégia Saúde da Família realiza atendimentos, principalmente domiciliares, focados na atenção básica e cobre 63,1% do território nacional. São 42.855 equipes, em 5.497 municípios, fazendo o acompanhamento do dia-a-dia das famílias.
Além disso, desde 2011, as diretrizes implementadas pela Rede Cegonha visam proporcionar saúde, qualidade de vida e bem-estar às mulheres durante a gestação, parto, pós-parto e o desenvolvimento da criança até os dois primeiros anos de vida. A iniciativa inclui os cuidados ao nascer (pesagem, medição, identificação de doenças prevalentes, avaliação do desenvolvimento neuropsicomotor); acompanhamento do crescimento para prevenir doenças evitáveis; orientações para alimentação saudável e incentivo à amamentação.
Outro braço importante no combate à mortalidade na infância são as ações de imunização, com a oferta de 11 vacinas no calendário infantil.