Entrevista com Paulo Gaia: de olho na recuperação econômica

*Esta entrevista foi concedida no âmbito da publicação "Recuperação Econômica Inclusiva: Caminhos e Repertórios para Municípios", produzida pela Agenda Pública e Estratégia ODS no final de 2021. Do ponto de vista da economia,...

*Esta entrevista foi concedida no âmbito da publicação “Recuperação Econômica Inclusiva: Caminhos e Repertórios para Municípios”, produzida pela Agenda Pública e Estratégia ODS no final de 2021.

Do ponto de vista da economia, em que momento estamos agora? É possível fazer um balanço no Brasil?

A gente está claramente na fase da recuperação, só que é uma recuperação em que as pessoas, os trabalhadores e as empresas estão muito fragilizados. Houve um aumento do desemprego brutal, especialmente para quem trabalha com serviços de interação direta e não os serviços remotos, o famoso home office. Quem não pode fazer home office está numa situação crítica e o distanciamento social pegou em cheio essas atividades econômicas que geram muito emprego e dependem de interação direta. Esse é um primeiro olhar muito cuidadoso que a gente precisa ter para essas pessoas e para ver que tipo de oportunidade a gente pode oferecer, que tipo de medidas e programas possam ser feitos para reintegrar essas pessoas no trabalho dos municípios. É claro que a reabertura gradual dos restaurantes, dos shoppings, das lojas ajuda, mas a gente precisa ter clareza que só 25% dos trabalhadores brasileiros puderam fazer home office. Isso demanda um olhar do Estado, do município, da prefeitura, muito cuidadoso para fazer um mapeamento dessas atividades e dessas pessoas.

Aproveitando que você citou a questão do home office e pensando nas desigualdades que o Brasil tem, a pandemia mexeu com o mercado de trabalho, acelerando os processos de transformação digital. Por outro lado, acentuou o abismo da exclusão digital, que atinge grande parte das pessoas. Como você vê o papel do setor público nessas questões relacionadas à geração de trabalho e renda, diante de um cenário nacional tão cheio de informalidade e trabalhos que exigem algo mais presencial?

O problema é que essa transformação digital que você menciona caminha de mãos dadas com a qualificação. A transformação digital demanda trabalho qualificado, cria oportunidades e empregos em que o trabalho qualificado é necessário, como por exemplo nos serviços de saúde, de educação, toda a parte de serviços empresariais, de marketing, tecnologia, finanças, advocacia. O problema é que a gente tem um déficit de qualificação grande por um lado. E por outro lado, essa transformação digital acabou demandando o trabalho não qualificado para serviços que foram prejudicados no lockdown, porque eram serviços que não podiam ser feitos, inclusive. Então acho que os municípios, os governos têm que ter
um olhar de entendimento de que a transformação digital não é uma panaceia, que ela não vai resolver o problema de quem tem baixa qualificação e de municípios muito pequenininhos. Não tem como: você precisa fazer uma ponte, uma estrada, uma escola, um hospital… Qual é a chance de um município que tem 2 mil, 5 mil habitantes? Nenhuma. A ideia de montar consórcios é muito poderosa. Muitas vezes, os prefeitos nem tem consciência disso. Se você pega dez municípios de 20 mil, já virou uma microrregião de 200 mil habitantes. Pensando de maneira conjunta tem muito mais coisas para se fazer.

Mas aí a gente esbarra na política, não?

Mas você pode buscar convergências econômicas. Muitas vezes, o interesse econômico pode aliar partidos de oposição.

O plano pró-Brasil está muito na questão de obras públicas, mas parece que o país tem uma escassez muito grande na área de incentivo ao desenvolvimento tecnológico da indústria. Nas últimas décadas, a indústria perdeu um papel de protagonismo na geração de empregos. Para os municípios, há um impacto direto tanto quando uma indústria abre, mas muito pior quando ela fecha. O Brasil tem um olhar econômico mais para o agronegócio, que não é um grande gerador de empregos no curto prazo e esse papel da indústria, que também vai gerar um dinamismo em termos de tecnologia, inovação, fica quase que para um terceiro plano, porque a gente também tem um olhar muito forte para os serviços. Como você vê isso?

No final do dia, o setor industrial é meio que o coração do desenvolvimento de qualquer cidade, região ou país. Quando a gente faz um mapeamento dos empregos, dos salários, vê que tem um setor que tem capacidade de gerar muito emprego e pagar bons salários que é o industrial. O setor de serviços sofisticados acaba pagando salários ainda mais elevados, como no setor financeiro, de marketing, design, mas são serviços muito concentrados que tendem a se localizar em um lugar só. Como São Paulo, que faz todo o serviço sofisticado do Brasil inteiro. Então não tem tanta capacidade de gerar emprego como o setor industrial. Você pode ter polos industriais em milhares de municípios com emprego qualificado, com salário bom, formalizado, com carteira. Esse processo de desindustrialização que o Brasil vem passando tem sido dramático para os municípios. Eu vi uma matéria recente sobre aquela tragédia de Jacarezinho, de como era um polo industrial do Rio de Janeiro e como a destruição do polo industrial trouxe pobreza e violência gigantescas. Isso se aplica a milhares de municípios brasileiros, que estão vendo fábricas fechando e os empregos de qualidade indo embora. A partir disso, precisaria haver um olhar por parte do governo, do que a gente chama de política industrial em economia, um cuidado especial com o setor industrial. E ele é muito delicado, porque compete com o mundo todo. É diferente dos serviços. A agricultura brasileira também compete com o mundo todo, mas já é uma campeã mundial. Mas a indústria brasileira está apanhando no mundo todo porque no resto do mundo os governos têm olhado de forma muito cuidadosa para o seu setor industrial e têm ocupado espaço. A desindustrialização brasileira é um pouco o reverso da industrialização asiática, até os americanos. Se olharmos o [presidente americano Joe] Biden, ele tem um plano industrial muito claro. Os governos brasileiros, especialmente depois de 2015/16, abriram mão dessa ideia de que precisa haver uma política industrial. Só para citar um exemplo, eles acabaram com o Ministério da Indústria. A gente tinha Ministério da Indústria e Comércio, que não existe mais. Isso é simbólico. Como diria um psicólogo de que eu gosto muito, o [Carl] Jung, o simbólico é mais real do que o próprio real. Quando o governo acaba com o Ministério da indústria, isso é um simbólico muito grande. Ele não acabou com o Ministério da Agricultura, pelo que me consta. Realmente é uma situação difícil.

Muitos municípios estão em situações complicadas do ponto de vista tributário. Como podem gerenciar o problema financeiro para implementar políticas locais?

O município está muito bem-posicionado, se for criativo do ponto de vista financeiro, para fazer muitas coisas. Muitas vezes, ele tem ativos, prédios, terrenos e não sabe usar adequadamente. Então dá para bolar parcerias público-privadas, usar os ativos públicos como colaterais para financiamento. Acho que cabe o uso de criatividade por conta do poder público. Sou muito entusiasta dessa ideia do uso criativo dos ativos públicos, porque a gente não pode só ficar dependendo da transferência do governo federal. O município tem muito espaço para ser criativo nesse sentido. É um caminho que eu vejo no momento em que a arrecadação está muito baixa, em que a atividade econômica patina muito.

De que forma você vê políticas públicas municipais de incentivo ao cooperativismo e a compras governamentais locais? Em muitas cidades, as secretarias precisam “ensinar” pequenas empresas ou até mesmo MEIs a participar de licitações. Como seria possível acelerar essas políticas?

Precisamos ter uma cabeça de empreendedorismo público. Os prefeitos e os secretários têm que ter uma cabeça de empreendedor. A gente brinca e
é uma situação triste dos trabalhadores que estão numa situação de trabalho precário e a gente diz que é empreendedorismo. Na verdade, não é empreendedorismo. Eles estão somente numa situação muito difícil, mas ao mesmo tempo eles se viram, são empreendedores. A gente deveria se esforçar para trazer essa mentalidade para o setor público. O secretário, o prefeito está numa posição muito privilegiada em relação a coisas que ele pode fazer de leis, de decretos. Só para dar um exemplo, eu estava conversando com o [Fernando] Haddad e a Uber fez uma negociação em que pagava não sei quantos centavos por quilômetro rodado em São Paulo. Entrou uma fortuna de dinheiro no caixa da prefeitura por causa disso. Tem um livro de Economia de que eu gosto muito cujo título é O Estado Empreendedor, da economista inglesa-italiana Mariana Mazzucato. Acho que essa cabeça de empreendedorismo público é algo que a gente deveria desenvolver aqui e que volta naquela ideia que destaquei do uso de criatividade. O setor público tem muitas vantagens para desenhar estímulos, estratégias que o setor privado não consegue fazer.

Mais algum ponto que você gostaria de acrescentar?

É importante dar uma palavrinha sobre a União, o governo federal, o estadual. Estamos dando várias ideias, mas o município não é mágico. No final do dia, é um problema de falta de oportunidade. Cabe à União e aos estados olhar para isso e maximizar as oportunidades dos municípios. Muitas vezes, a escala financeira necessária para que essas regiões saiam
da pobreza está na mão da União e dos estados, não adianta a gente achar que os municípios vão se tornar super-homens. A gestão de um município pobre tem muitas restrições.

Para saber mais, acesse a publicação: Recuperação Econômica Inclusiva: Caminhos e Repertórios para Municípios.

*Graduado em Economia pela FEA-USP, mestre e doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, Paulo Gala foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge (Reino Unido) e Columbia (Nova York). É professor de economia na FGV-SP e “Brasil, uma economia que não aprende” é seu último livro.